- Como imaginar a existência de um Estado Democrático de
Direito no país em que, em 2018, morreram assassinadas mais de
60 mil pessoas, sendo ¾ de negros e pobres?
Em que o “auto de resistência” tornou-se um álibi dos agentes do
Estado para excluir sua responsabilidade pela morte de jovens nas
favelas?
No país em que há mais de 32 milhões de pessoas sem trabalho
formal, com direitos minimamente reconhecidos? Onde há 13
milhões de desempregados?
No país em que se naturaliza o trabalho infantil? Em que pessoas
morrem por dengue e outras doenças?
No qual uma presidente da República foi destituída de suas funções
sem ter cometido qualquer ilícito político ou jurídico?
Em que alguém é processado criminalmente por mera convicção da
acusação? Onde se é condenado e encarcerado com provas forjadas,
num grande conluio? - Este país é o Brasil, no qual imaginávamos haver uma Constituição
cidadã (agora vista como mero exercício de retórica política), mas
que não foi capaz de assegurar nem garantir os direitos mínimos da
verdadeira cidadania republicana. - Acredito que os acontecimentos dos últimos anos ocorreram pelo
fato de a sociedade brasileira se recusar a examinar com maturidade
os diversos erros do seu passado. - O oposto do Estado Democrático de Direito é o Estado de Exceção.
E o país foi fundado formalmente sob um Estado de Exceção, que
perdura até os dias de hoje, mas fazemos de conta que vivemos numa
ordem liberal, democrática e republicana, que só existe no papel. - A primeira Constituição brasileira, de 1824, nos foi outorgada,
imposta. Ironicamente, a República foi fundada por monarquistas,
que nos impuseram uma federação, que só fortaleceu o mandonismo
dos senhores de escravos. Os primeiros governos da República, de
Deodoro e Floriano, governaram sob Estado de Sítio. Arthur
Bernardes também impôs um Estado de Sítio. - Muitos historiadores consideram que o Brasil de verdade iniciou-
se a partir de 1930, por um movimento que nos impôs a ditadura de
1937-1945, quando nos outorgaram mais uma Constituição. O que
fizemos em 1946? Jogamos para debaixo do tapete os horrores da
ditadura, como se nada fossem e não tivessem destruído milhares de
pessoas; como num jogo de cabra cega, a sociedade limitou-se a
prosseguir, sem maturidade para exigir e realizar o exame da nossa
memória, de tantos erros do passado, para buscar no
restabelecimento da verdade o caminho para a construção de uma
nação plena. - Tempos depois veio outro golpe, que instalou o regime civil-militar
de 1964-1985. O que fizemos depois de 1985? Um grande acordo,
que manteve a anistia imposta de 1979 e preservou os que
participaram e os que se beneficiaram dos arbítrios do regime
anterior, tendo durado o pacto até o impedimento da Presidente
Dilma, em 2016; ou seja, mais um golpe, cujo prosseguimento nos
trouxe à tragédia em que estamos. - O fato de não ter sido implementada uma justiça de transição faz
com que a sociedade de hoje desconheça os graves erros cometidos
no passado e nos deixa à mercê do atoleiro político em que se jogou o
país. - Quem foram os artífices do golpe político de 2016? Os de sempre.
Ou seja, o passado não resolvido, que a todo tempo traz à
lembrança os pesadelos, as dores e os abusos da escravidão, que faz
com que hoje busquem eliminar qualquer forma de solidariedade,
com a imposição de duras reformas para os trabalhadores e os mais
pobres. - Na última segunda-feira, dia 8 de julho, o Sr. Nelson Jobim (a meu
ver, em uma proposta de novo acordão, como o da anistia de 1979)
disse que “os militares foram julgados pela Comissão da Verdade e o
PT pela Lava Jato”. Ou seja, deixou evidente que seria a hora de parar
e jogar para debaixo do tapete as revelações do The Intercept. Ao
longo da semana, aceleraram os trabalhos para a aprovação da
reforma da Previdência e a ratificação da reforma trabalhista, pelas
quais se mantém o país atrelado à pobreza e sem esperança de
futuro, principalmente para os jovens. Desta forma se materializou o
desmanche definitivo da Constituição cidadã, que já tinha perdido
sua eficácia com o esdrúxulo impeachment de 2016. - Não existe democracia com pobreza extrema. Nem pode haver
Estado de Direito em um país tão rico, mas com um povo tão
empobrecido em decorrência da injusta distribuição da riqueza. - O país convive pacificamente com a crueldade (violência
extremada), desde aquela perpetrada em Canudos até os autos de
resistência forjados nas favelas das periferias das grandes cidades;
dos despejos coletivos como os de Pinheirinhos, em SP, e da Telemar,
no Rio de Janeiro, nos quais se jogam na rua milhares de pessoas,
entre crianças, idosos e mulheres; até os massacres de El Dourado
dos Carajás e os assassinatos dos povos quilombolas e indígenas, que
são expropriados das suas terras ancestrais. - Neste ponto, gostaria de salientar algumas pautas defendidas e
aprovadas pela instituição que represento neste evento. No IAB
Nacional – Instituto dos Advogados do Brasil, em decisões
submetidas ao Plenário, fomos contra o impeachment da presidente
Dilma; a emenda constitucional da morte; o Escola Sem Partido;
defendemos o direito do Presidente Lula participar da eleição de
2018, como determinou o conselho de direitos humanos da ONU; e
nos posicionamos, na quase totalidade, contra o “pacote anticrime”
do atual governo. Diante de tantos retrocessos e barbaridades, o
Instituto dos Advogados Brasileiros tem procurado mostrar que
existe uma luz no fim do túnel, que pode nos levar ao caminho para o
resgate da democracia e do verdadeiro Estado de Direito. - Por fim, gostaria de dizer que, apesar de tudo, enxergo, à frente, a
esperança de um futuro melhor: digo isto tendo em vista a luta
travada pelos estudantes brasileiros, no mês de maio p.p., quando
organizaram duas manifestações de massa expressivas, que revela
uma juventude vanguardista (no exato conceito leninista), que luta
por todos e não só por interesses corporativos. Pelas mãos e sonhos
de vocês passará a reconstrução efetiva deste grande país.
Por Jorge Rubem Folena de Oliveira no Congresso da UNE, Brasília, 12 de julho de 2019.